poço de VENEZA: a engenharia que salvou a cidade da sede

#VocêSabia?

Poço de Veneza

Quando pensamos em Veneza, logo pensamos em água. Mas, o que talvez você não saiba é que, por muito tempo, a cidade viveu um paradoxo.

O historiador e cronista veneziano Marin Sanudo (1490) descreveu isso de forma brilhante: “Tudo abunda, exceto água doce, em qualquer época, de modo que Veneza está na água e ainda assim não tem água.”

Cercada por água salgada, Veneza não tinha rios, nascentes ou fontes naturais de água doce. Então, como essa cidade se tornou a Rainha do Adriático sem acesso a esse recurso vital? Spoirler: a engenharia deu um ajudinha.

Pintura de Giovanni Antonio Canal – Regatta on the Grand Canal.

uma cidade improvável: POR QUE VENEZA FOI CONSTRUÍDA SOBRE A ÁGUA?

No século V, o Império Romano estava à beira do colapso. Invasões de povos bárbaros, como hunos e lombardos, devastaram o norte da Itália, deixando cidades inteiras em ruínas. Nesse cenário de destruição, os moradores da região não tiveram muita escolha, a não ser fugir

O lugar escolhido foi um local que, em circunstâncias normais, ninguém jamais consideraria habitar: uma lagoa pantanosa repleta de pequenas ilhas cercadas por águas salgadas. Dessa forma, nasceu Veneza.

Uma cidade forjada pela necessidade de sobrevivência, em um ambiente cheio de desafios. Assim, contra todas as probabilidades, esta pequena civilização acabou construindo uma das façanhas de engenharia mais impressionantes que o mundo já viu. 

problemas além do solo

Construir em solo pantanoso é, sem dúvidas, um dos maiores desafios da engenharia — até mesmo nos dias de hoje. Os primeiros construtores venezianos perceberam isso desde cedo. Veneza é, literalmente, uma floresta invertida.

A cidade inteira cresceu sobre milhões de estacas de madeira. Para você ter uma ideia, só na Ponte de Rialto, uma das mais famosas da cidade, foram usadas aproximadamente 12 mil estacas para garantir sua estabilidade no solo instável.

(1) Ilustração de Jan van Grevenbroeck / (2) Autor desconhecido

Porém, os problemas não paravam no solo instável. Cercada por água salgada, Veneza enfrentava um dilema: como garantir água potável para sua população?

Chega a ser irônico pensar em uma cidade rodeada de água onde nenhuma gota sequer podia ser utilizada para consumo. No entanto, esse problema não era novidade, mas se agravou à medida que a população crescia em ritmo acelerado.

A SOLUÇÃO: POÇO DE VENEZA

Como Veneza, essa “improbabilidade ecológica” única e criada pelo homem conseguiu sobreviver sem fontes de água doce? 

A resposta para isso veio do céu!

Em uma época em que as cidades europeias dependiam de três principais fontes de água doce para suas necessidades domésticas e industriais — rios, aquedutos e poços de águas subterrâneas, Veneza acrescentou uma quarta: a captação da chuva.

Os primeiros habitantes das lagoas provavelmente começaram explorando os aquíferos superficiais formados pelas chuvas, que ficavam retidos em camadas de argila sob o solo pantanoso. Escavações rudimentares permitiram o acesso a esses reservatórios, mas sua capacidade era limitada.

Essa prática inicial, embora simples, foi o embrião de uma solução mais sofisticada, que evoluiria com o tempo a medida que a cidade se desenvolvia. 

Em vez de tentar cavar poços tradicionais, inviáveis devido à água salgada e ao solo pantanoso, os venezianos transformaram suas praças (campi) em verdadeiros sistemas de captação, filtragem e armazenamento de água da chuva

Desse modo, surgiu o famoso pozzo alla veneziana (poço de veneza).

Apesar de serem conhecidos como “poços”, essas estruturas, na verdade, se enquadram mais como cisternas. Pois, a água não vinha de uma fonte subterrânea, como por exemplo, um lençol freático, ela era armazenada.

Embora a prática de cisternas não fosse exclusiva de Veneza, em nenhum lugar da Europa a abordagem para a captura de água da chuva era tão sofisticada, regulada e adaptada para atender uma cidade tão populosa quanto Veneza.

COMO OS POÇOS DE VENEZA FORAM CONSTRUÍDOS?

No final do século XVIII, Giacomo Filiasi relatou como os venezianos transformaram uma necessidade em virtude ao desenvolver um método de “fazer da água das nuvens algo extremamente saudável e perfeito” — um sistema que sempre surpreendia os visitantes estrangeiros.

A ideia de utilizar água da chuva parece simples, mas o sistema desenvolvido pelos construtores venezianos era algo bem complexo.

Normalmente, o poço era localizado no centro de uma praça pública ou pátio privado, onde apenas a vera (cabeça do poço), feita de mármore ou tijolos, era visível na superfície. Além disso, a vera servia tanto como suporte para quem retirava a água quanto como elemento decorativo.

Entretanto, o verdadeiro segredo estava escondido abaixo das praças.  

A estrutura do poço

Para entender melhor como esse sistema era desenvolvido, separamos sua construção em 5 etapas, são elas:

Escavação e Impermeabilização: Sob as praças, cavavam uma grande área, com um tanque largo e profundo, geralmente de 3 a 4 metros. Em seguida, forravam com uma argila impermeável (Creata) que bloqueava a entrada de água salgada.

O poço: No centro da cisterna, instalava-se o eixo do poço (canna) sobre um lastro de pedra. Esse eixo era feito com tijolos especiais chamados Pozzali que permitiam que a água da chuva filtrada entrasse no conduite.

Filtragem natural: Posteriormente, a bacia era preenchida com camadas de areia (Spongia) de diferentes finuras que ajudavam na filtragem da água antes de ser armazenada para consumo. Assim, imitando o funcionamento de um lençol freático natural.

Captação da Água: As praças eram levemente inclinadas em direção ao poço, tendo de 2 a 4 bueiros de pedra (Pilelle) que direcionavam a água da chuva para os ralos ou orifícios (Gattoli).

Arquitetura adaptada: Para maximizar o abastecimento, os prédios próximos ao sistema tinham calhas que direcionavam a água da chuva para os ralos.

Esse sistema exemplificava a engenhosidade veneziana, onde o contexto urbano era inserido e utilizado de forma criativa e eficiente para auxiliar nos problemas da cidade.

A imagem abaixo ilustra a estrutura do poço de veneza:

A Complexa Gestão dos Poços Veneza

A supervisão dos poços de Veneza envolvia uma organização robusta e multifacetada, essencial para garantir o abastecimento da água.

Este sistema estava sob a responsabilidade de diversas autoridades e trabalhadores especializados, que desempenhavam funções vitais para a construção, manutenção e abastecimento das cisternas.

quem supervisionava os poços de veneza?

A partir de 1480, o lado técnico e estrutural das cisternas ficou sob responsabilidade do Provveditori di Comun, uma espécie de departamento de obras públicas, que geria também ruas, praças, pontes e aterros​.

A qualidade da água era monitorada pelos Provveditori alla Sanità, os oficiais de saúde pública, enquanto o Magistrato alle Acque, responsável pela gestão da lagoa e dos canais, desempenhava um papel essencial na prevenção de danos causados por inundações ou marés altas​.

Os chefes paroquiais (capi contrada) tinham um papel crucial na gestão local dos poços públicos, sendo responsáveis por abrir os poços duas vezes ao dia, anunciados pelo toque de sinos.

Além disso, os chefes paroquiais poderiam aplicar multas a comerciantes e artesãos que tentassem usar a água para fins lucrativos​.

quem construia oS POÇOS DE VENEZA?

A operação do sistema exigia a colaboração de várias guildas e profissionais especializados:

Pozzeri (construtores de poços): Especialistas na construção, reparo e manutenção das cisternas, organizados dentro da guilda dos pedreiros (mureri).

Bargueiros: Transportavam a areia do Lido, essencial para os filtros das cisternas.

Ferreiros: Instalavam tampas de ferro nos poços, garantindo sua segurança.

Varredores de Rua: Mantinham limpas as áreas pavimentadas ao redor das cisternas e desobstruíam os orifícios de drenagem (gattoli), fundamentais para a captação da água da chuva.

Ainda sobre os varredores de rua, precisamos falar de um detalhe curioso e que demonstra a preocupação e coordenação desse sistema complexo.

Durante as marés altas os varredores de rua tinham uma função essencial: vedar os drenos com argila para impedir a entrada de água salgada, protegendo assim a qualidade da água armazenada.

Não era um trabalho glamoroso, mas era indispensável para manter o sistema funcionando.

A ÁGUA DA CHUVA NEM SEMPRE ERA SUFICIENTE

O funcionamento dos poços enfrentava também um grande desafio: a seca.

O sistema geralmente captava mais água durante o inverno e a primavera, gerando um excedente necessário para enfrentar os meses secos de verão. Contudo, a água acumulada era variável, essa imprevisibilidade exigia um controle da água.

Assim, entra em cena os acquaroli!

Os acquaroli eram responsáveis por buscar água doce no continente, especificamente do Rio Brenta, usando barcaças especiais chamadas burchi. Além disso, cada viagem levava de 3 a 4 horas e era essencial para manter o sistema funcionando, principalmente no período da seca.

O trabalho dos acquaroli não parava! Durante um período de 16 meses, de 1º de março de 1597 a 31 de julho de 1598, 33 barcaças registradas da guilda realizaram um total de 11.857 viagens.

Cada barcaça carregava 30 botti de água doce, ou 25,38 m³. Assim, durante o período de 16 meses, os acquaroli transportaram um total de aproximadamente 300.930,66 m³.

A titulo de comparação um caminhão-pipa comum transporta cerca de 10 m³ de água. Os acquaroli transportaram o equivalente a 30.093 caminhões-pipa cheios nesse período.

E como a água chegava às cisternas? Nada de jogar direto no poço. Os acquaroli despejavam a água pelos gattoli — aqueles ralos de pedra estrategicamente espalhados nas praças.

A água passava pela famosa camada de areia (spongia), que fazia a filtragem, antes de chegar ao reservatório. Resultado? Água pronta para o consumo.

Alguns visitantes ficavam impressionados com a qualidade da água e elogiava o sistema. Em 1683, o médico militar Luc’Antonio Porzio, destacou que como a água das cisternas passava por camadas de areia, seus defeitos eram corrigidos, especialmente o gosto e o cheiro.

A primeira imagem ilustra dois acquaroli abastecendo um sistema, enquanto a segunda demonstra um sistema para içar barcos no rio Brenta (principal fonte de extração de água doce).

(1) Grevembroch, final do século XVIII. / (2) Sistema para içar barcaças.

a água como divisor social

A água na Sereníssima República de Veneza era, de certa forma, acessível a população, mas nem todos podiam usufruir a vontade desse bem. Não pense que os acquaroli transportavam milhares de barris de água de graça.

Em Veneza, o acesso à água doce não era apenas uma questão de necessidade; era um reflexo das divisões sociais e econômicas que moldavam a vida na cidade. O sistema de cisternas, embora engenhoso, evidenciava as desigualdades sociais.

Enquanto os ricos desfrutavam do luxo de poços privados e podiam pagar por água transportada, os pobres dependiam de longas caminhadas até as cisternas públicas e do trabalho pesado de carregar água para suas casas. 

Para se ter uma ideia, a cidade chegou a ter quase 7 mil poços espalhados pela cidade, porém menos de 5% deles eram públicos.

Além disso, os mais pobres precisavam ter um controle bem rigoroso de sua água, evitando desperdícios. Afinal, essa população só tinha acesso aos poços duas vezes por dia. 

Nesse caso, preciso concordar com Marin Sanudo, que vivendo na época, conseguiu retratar o problema, dizendo: Verdade seja dita, é cômico estar rodeado por água e, ainda assim, precisar comprá-la.

Fonte de água no pátio do palácio dos duques, em um cartão postal de 1870.

Apesar das dificuldades enfretadas pelos mais pobres, o ato de buscar água nos poços públicos criou um ambiente de interação social, um local de encontro, um símbolo da vida comunitária veneziana.

O dramaturgo Giacinto Gallina capturou esse aspecto em sua peça Le serve al pozzo (As criadas no poço), de 1873, onde o poço é o centro de todas as interações: os personagens discutem,  namoram e compartilham notícias e histórias ao redor dele.

O poço também representava um forte simbolismo político. A elite, vez ou outra, para ganhar prestígio popular, financiava a construção de poços nas praças públicas, deixando marcado seus brasões familiares na paisagem urbana.

os poços de veneza ainda são utilizados?

A construção do aqueduto de Veneza em 1884 marcou um divisor de águas (literalmente) na história da cidade. Até então, Veneza dependia exclusivamente de suas cisternas e do transporte de água doce do continente.

Com o aqueduto, essa dependência terminou, levando à gradual desativação do sistema de cisternas que havia sustentado a cidade por séculos.

PORQUE OS POÇOS FORAM DESATIVADAS?

Os poços foram uma excelente solução durante muitos anos, um sistema que envolveu a cooperação de toda sociedade para funcionar. Sem ele, dificilmente Veneza se desenvolveria e crises hídricas poderiam ser fatais para a população.

Porém, nem tudo são flores, manter o sistema funcionando era um esforço contínuo, enfrentando desafios como:

  • Marés Altas: Em tempos de acqua alta, água salgada e resíduos podiam invadir as cisternas, exigindo limpeza e desinfecção.
  • Manutenção constante: O funcionamento das cisternas exigia um esforço constante, incluindo a limpeza das áreas de captação, a troca da areia filtrante e a reparação das estruturas.
  • Secas: Durante períodos prolongados sem chuva, a capacidade das cisternas diminuía, e a cidade dependia ainda mais dos acquaroli.
  • Descarte de Lixo: A limpeza das praças era essencial para evitar a contaminação da água da chuva. Leis rigorosas proibiam o despejo de lixo próximo aos poços.

Em 2004, surgiram planos para reativar parte dos sistema, com propostas de utilizar a água dos poços para fins como descarga de vasos sanitários, abastecimento de hidrantes, irrigação de jardins e limpeza de ruas e praças. No entanto, nada aconteceu.

Os poços de Veneza simbolizam muito mais que uma criativa engenharia, eles refletem uma complexa interação entre política, sociedade e cultura, onde a gestão de um recurso tão essencial moldou não apenas a infraestrutura da cidade, mas a vida cotidiana.

Hoje, alguns poços ainda podem ser encontrados pela cidade. Resistentes ao tempo, são a prova viva da engenhosidade veneziana. Eles nos lembram que soluções sustentáveis podem emergir da criatividade e do esforço coletivo, mesmo em cenários adversos.

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